Trecho do livro "Borderline" de Mauro Hegenberg, da Editora Casa do Psicólogo, sexta edição.
O borderline e o Momento Atual
O borderline, em virtude de sua necessidade de apoio, procura um lugar de acolhimento que está cada vez mais difícil de encon¬trar. A quebra de valores tradicionais observada ao longo do século XX empurra o ser humano para uma crise existencial, em razão da solidão provocada pela ruptura da família e dos laços de solidarieda¬de, pelo individualismo crescente, pela competição feroz em uma sociedade em contínua transformação. Com tudo isso, as relações estáveis de outrora são apenas recordações.
Quando a estabilidade dos relacionamentos estava garantida por valores morais reconhecidos, podia-se observar que a solidão, o vazio e o tédio, próprios da existência humana, estavam escamoteados por um caminho a seguir, definido por convenções sociais marcadas pela tradição e pelo respeito a normas consagradas. Na sociedade atual, onde tudo se transforma e novos valores são rapidamente consumidos e substituídos por outros que serão também logo desmanchados, o nível de angústia tende a aumentar por causa da insegurança gerada pelas contínuas mudanças.
Fruto destas transformações, não há mais regras claras a seguir ou a se contrapor. O "mocinho" bom e o "bandido" mau, a guerra fria com um inimigo conhecido, são coisas do passado. Se antes era mais simples lutar contra a ditadura e as multinacionais, "vilãs" de um certo momento histórico, hoje o maniqueísmo acabou. Se por um lado isso pode significar maturidade, por outro complica a situação, empurrando o ser humano para decidir tudo sozinho. Exemplificando, o flerte entre homem e mulher, anos atrás, era definido por regras que não mais existem. Hoje, se uma moça faz sexo nos primeiros encontros, pode ser considerada promíscua; se não fizer, ela pode ser vista como pessoa estranha e o parceiro pode se afastar por considerá-la esquisita. Não há regras a seguir, vai depender de características específicas de cada casal, ou seja, o sujeito está sozinho para decidir segundo seus próprios valores, de acordo com cada situação.
O casamento, a religião, a honra, a honestidade, o amor, tudo está em questão, nada é fixo ou estável. A solidão humana se acentua. Quem sou eu não é uma pergunta abstrata; "to be or not to be" torna-se uma questão cotidiana, e não simples fala teatral. Se todos os seres humanos estão às voltas com estas questões complicadíssimas, o borderline coloca uma lente de aumento nestes problemas e sofre constantemente com eles.
O "problema borderline" se inscreve dentro da questão da pós¬modernidade. O aumento dos casos de depressão, vazio, tédio e solidão nas sociedades capitalistas é também fruto de uma promessa por um consumo eficiente, ou seja, um consumo que pretende preencher o vazio do cidadão e satisfazê-lo. A roupa da moda, carros, as drogas, o último filme, o próximo namoro, a viagem dos sonhos, livros, todo esse aparato deveria ser suficiente para garantir a "felicidade". Como tal promessa não se concretiza, mas é exigida pelo modo de produção da subjetividade imposto pelo nosso modelo atual de sociedade, cria-se o conflito, levando à depressão este sujeito "incapaz" de se satisfazer plenamente com o aparato de consumo oferecido.
As sociedades capitalísticas propõem, ao sujeito, alienação e consumo. Deleuze (1990) ensina que "O serviço de vendas tornou-se o centro ou a 'alma' da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social e forma a raça impudente de nossos senhores" (p.224). Continua: "a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo" (p.221).
Assim, no mundo de hoje, o sujeito está só. Dependente de um meio ambiente estável e acolhedor, o borderline não encontra guarida para seu sofrimento, apenas encontra pessoas apressadas e ocupadas, aparentemente satisfeitas na procura de seu bem-estar material e na busca incessante das promessas nunca cumpridas de completude e de ascensão social. Matos (1978) afirma que "A eterna mudança é inimiga da memória, pois esta se torna supérflua em um mundo no qual o homem é tratado como mera função, como business. O indivíduo é abstraído e formalizado, pois a razão reguladora da vida social é cálculo e interesse" (p.210). Tal situação tende a aumentar o desamparo do borderline, que se sente cada vez mais só, sem espaço para constituir sua subjetividade inadaptada às circunstâncias de competição e consumo.
Não é surpreendente que, diante disso tudo, o número de pacientes-limite aumente; eles são reflexo de uma sociedade pouco preocupada com seus cidadãos e mais interessada na globalização e seus efeitos econômicos. Painchaud & Montgrain (1991) afirmam que "como a problemática social mudou, enfrentamos modificações de configuração psicológica inconsciente, cujo resultado clínico se constatará pelo aumento do número daquilo a que convencionamos chamar de estados-limite ou borderlines" (p.44).
Definição Como a nomenclatura a respeito é controversa, cabe definir o que se estará considerando como borderline neste livro. Ao se delimitar um tema, uma escolha é inevitável, e ela será sempre questionável, dependendo do ponto de partida utilizado para avaliá¬la. Winnicott, por exemplo, não se incomodou em realizar esforços de classificação psicopatológica, e sua psicanálise está mais interessada na compreensão do self do que em uma divisão nosológica. A coleção na qual está inserido este livro tem uma preocupação didática e optou por diagnósticos, o que em algum momento da formação é útil e necessário.
Em Laplanche & Pontalis (1967) tem-se como verbete para "Caso-limite ou Limítrofe": "Expressão utilizada a maioria das vezes para designar afecções psicopatológicas situadas no limite entre neurose e psicose, nomeadamente esquizofrenias latentes que apresentam uma sintomatologia de feição neurótica" (p.94). Fique claro que esta não é a opção teórica adotada neste livro, que procura delimitar o conceito de forma a ser útil na prática clínica, estando mais próximo dos psicanalistas que atualmente discutem esta questão.
Para o Borderline, ou Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), adotar-se-á a descrição utilizada nas classificações internacionais psiquiátricas, embora a proposta do texto seja a compreensão psicanalítica do tema.
As Classificações Internacionais das Doenças Mentais, como o CID e o DSM, são apenas descritivas. Elas não se preocupam com o sentido, com a explicação do sintoma, afastando-se portanto da Psicanálise. Essa proposta descritiva se alia a uma compreensão médica da Psicologia, permitindo que a Psiquiatria de hoje se aliene cada vez mais da Psicopatologia e se contente com uma descrição simplista de sintomas, chegando-se rapidamente ao diagnóstico e à medicação. Os laboratórios de medicamentos, que movimentam bilhões de dólares, estão bastante interessados nesta medicina simplificadora que propõe a medicação para suprimir o sintoma, sem a preocupação de compreendê-lo. Não que o medicamento não seja útil; pelo contrário, ele é fundamental; é seu uso indiscriminado e banal que deve ser questionado.
Por outro lado, se a descrição de sintomas do DSM e do CID possibilita tais desvios, também permite uma linguagem comum, fundamental para pesquisa e para se saber de qual paciente se fala.às vezes é tranqüilizador primeiro conhecer, em análise, pessoas às quais se denominam borderlines, e apenas depois tomar contato com as classificações internacionais, o que implica não ficar reduzindo o ser humano a ordens diagnósticas preestabelecidas, mas apenas encontrar descrições de pacientes já conhecidos.
É neste sentido que as classificações estão servindo de referência para este livro, mesmo ciente de que aproximações entre diagnósticos destas Classificações e da Psicanálise nem sempre são possíveis ou desejáveis.
Enfim, no CID-10 (1993), em F60.3, encontra-se Transtorno de Personalidade Emocionalmente Instável, subdividido em "Impulsivo" e "Borderline (limítrofe)": "Um transtorno de personalidade no qual há uma tendência marcante a agir impulsivamente sem consideração das conseqüências, junto com instabilidade afetiva. A capacidade de planejar pode ser mínima, e acessos de raiva intensa podem com freqüência levar à violência ou a 'explosões comporta-mentais'; estas são facilmente precipitadas quando atos impulsivos são criticados ou impedidos por outros." (p.200)
No tipo "Borderline" (limítrofe), além das características anteriores, observa-se: "... a auto-imagem, objetivos e preferências internas (incluindo a sexual) do paciente são com freqüência pouco claras ou perturbadas. Há em geral sentimentos crônicos de vazio. Uma propensão a se envolver em relacionamentos intensos e instáveis pode causar repetidas crises emocionais e pode estar associada com esforços excessivos para evitar abandono e uma série de ameaças de suicídio ou atos de autolesão." (p.201)
Segundo o DSM-IV (1996), temos em F60.31 (301.83) o quadro denominado "Perturbação Estado-Limite da Personalidade", com a seguinte descrição: "Padrão global de instabilidade no relacionamento interpessoal, auto-imagem e afetos, e impulsividade marcada, com começo no início da idade adulta e presente numa variedade de contextos, como indicado por cinco (ou mais) dos seguintes: 1 esforços frenéticos para evitar o abandono real ou imaginado; 2 padrão de relações interpessoais intensas e instáveis caracterizado por alternância extrema entre idealização e desvalorização; 3 perturbação da identidade: instabilidade persistente e marcada da auto-imagem ou do sentimento de si próprio; 4 impulsividade pelo menos em duas áreas que são potencialmente autolesivas (gastos, sexo, abuso de substâncias, condução ousada, voracidade alimentar); 5 comportamentos, gestos ou ameaças recorrentes de suicídio, ou comportamento automutilante; 6 instabilidade afetiva por reatividade de humor marcada (p. ex., episódios intensos de disforia, irritabilidade ou ansiedade, habitualmente durando poucas horas ou mais raramente alguns dias); 7 sentimento crônico de vazio; 8. raiva intensa e inapropriada ou dificuldades de a controlar (p. ex., episódios de destempero, raiva constante, brigas cons¬tantes); 8 ideação paranóide transitória reativa ao stress ou sintomas dissociativos graves." (p.672)
O diagnóstico de borderline surgiu no DSM apenas em 1980, enquanto outros transtornos da personalidade, como o esquizóide, o paranóide, o anti-social e o compulsivo (obsessivo), aparecem desde o DSM I, que data de 1952. Constata-se que a delimitação do transtorno é recente, o que também explica a confusão de conceitos em que está enredado o borderline até hoje. Delimitar o conceito traz uma vantagem, que é a de estar debatendo sobre um paciente conhecido, obtenível a partir de elementos comuns, evitando-se generalizações evasivas que mais confundem que esclarecem.
O transtorno borderline, segundo Kaplan & Sadock (1965), "ocorre em 2% a 3% da população geral e é, de longe, o transtorno da personalidade mais comum em contextos clínicos. Estima-se que ocorra em 11% das populações não hospitalizadas, 19% das populações hospitalizadas e 27% a 63% das populações com transtorno da personalidade. Ele parece ocorrer aproximadamente três vezes mais em mulheres do que em homens" (p.1558). Talvez o número de borderlines masculinos esteja subestimado. Muitos deles podem estar nas delegacias e nos presídios, em função de sua agressividade, ou nas mãos dos cuidadores dos usuários de drogas, por exemplo.
Há vinte ou trinta anos (ainda hoje?) era comum referir-se a estes pacientes como "histeria grave", lembrando que o diagnóstico "Histeria" foi abolido tanto do CID 10 quanto do DSM-IV. Outra confusão frequente é com o "Transtorno bipolar". O borderline não é um histérico, nem neurótico, e há diferenças no modo de se lidar com a neurose e com o TPB. O borderline também não é um psicótico nem está no limite entre a neurose e a psicose, mas é um quadro clínico específico, com suas características próprias.